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Bruno Wendel
Publicado em 15 de dezembro de 2025 às 05:12
A máxima de que só o tempo cura as dores não se aplica a Jurandy Silva Santana, de 51 anos. “Sinto a mesma angústia de sempre”, desabafa ao lembrar daquele 2 de agosto de 2014. Naquele dia, seu filho, Geovane Mascarenhas de Santana, então com 22 anos, foi sequestrado e posteriormente decapitado dentro de uma unidade da Polícia Militar no bairro do Lobato, em Salvador. Agora, quase 12 anos depois, os sete policiais irão enfrentar o júri popular no dia 27 de abril de 2026. >
“Eles que deveriam nos proteger cometeram essa atrocidade. Arrancaram um pedaço grande de mim. Se a Justiça for feita, todos serão condenados e teremos um pouco de alívio”, declara o pai de Geovane. A barbárie ganhou repercussão depois que o CORREIO acompanhou a saga de Jurandy em busca do paradeiro do filho. A série de reportagens virou documentário, exibido em diversos festivais ao redor do mundo. >
Caso Geovane: PMs serão julgados em 2026, quase 12 anos após o crime
Geovane foi sequestrado, morto e esquartejado por policiais militares das Rondas Especiais da Polícia Militar (Rondesp), recentemente transformadas em batalhões. As investigações apontaram que a mão esquerda da vítima foi encontrada carbonizada junto com a cabeça, em Campinas de Pirajá. O restante do corpo foi deixado no Parque São Bartolomeu. >
Após a conclusão da instrução processual, com a apresentação de provas, depoimentos de testemunhas e laudos periciais, o juiz pronunciou os réus, mantendo todas as acusações descritas na denúncia do Ministério Público do Estado da Bahia (MPBA). O Ministério Público informou que, em breve, irá designar um promotor para atuar no júri. Os policiais respondem por sequestro, roubo - já que a motocicleta e o celular de Geovane não foram encontrados -, ocultação de cadáver, formação de quadrilha e homicídio qualificado. >
O júri está marcado para começar às 8h, no Fórum Ruy Barbosa, no Campo da Pólvora, em Salvador. A data foi divulgada no dia 1º deste mês, no portal do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJBA). “A prova é robusta e demonstra que os policiais estiveram nos locais onde a cabeça e o corpo de Geovane foram deixados. Nossa expectativa é a condenação máxima, que pode chegar a 40 anos”, afirma o advogado da família, Paulo Kleber Carneiro Carvalho Filho, que atuará como assistente de acusação do MPBA no julgamento. >
Os réus que irão encarar os jurados são o subtenente Cláudio Bonfim Borges; o sargento Daniel Pereira de Souza Santos; os soldados Roberto Santos de Oliveira, Alan Moraes Galiza dos Santos e Alex Santos Caetano; além do ex-soldado Jesimiel da Silva Resende, expulso da corporação por outro desvio de conduta. Já o soldado Jailson Gomes Oliveira será julgado pelos mesmos crimes, com exceção da ocultação de cadáver. >
“Com exceção de Jesimiel, que não faz mais parte da corporação, os demais estão em plena atividade, trabalhando normalmente, inclusive em atuação externa”, diz o advogado. O CORREIO procurou a Polícia Militar para confirmar as informações e solicitar um posicionamento, mas até o momento não houve resposta. >
Inicialmente, 11 policiais militares foram denunciados pelo MPBA. No entanto, a juíza do caso, Gelzi Maria Almeida de Souza, então titular do 1º Juízo da 1ª Vara do Júri, absolveu os demais envolvidos no processo: o sargento Gilson Santos Dias e os soldados Cláudio César Souza Nobre, Fábio Nobre Lima Masavit Cardozo e Jocenilton Santos Ferreira.>
STF>
Apesar das inúmeras manobras judiciais da defesa e de recursos apresentados até o Supremo Tribunal Federal (STF), não foi possível evitar o julgamento pelo Tribunal do Júri. A audiência foi marcada após 11 anos e 10 meses do crime. “Não há mais como adiar, pois todos os réus foram intimados. Quem não comparecer sofrerá os efeitos da revelia”, explica Paulo Kleber. Segundo ele, a sentença não deve sair no mesmo dia. “Pela complexidade do caso, pelo volume de provas e pelo número de testemunhas de acusação e defesa, acredito que o julgamento dure ao menos dois dias”, avalia. >
Para a diretora-executiva da Iniciativa Negra, Carol Santos, o crime “demonstra mais um ato de crueldade de agentes de segurança da Bahia ao executar sumariamente mais um jovem negro periférico”. “Não é um caso isolado, mas uma atuação sistemática baseada no racismo estrutural do Estado. É fundamental que esses policiais sejam responsabilizados, como forma de garantir justiça aos familiares da vítima e pensar caminhos de enfrentamento e reparação”, afirma.>
Ao longo desses quase 12 anos, a família de Geovane convive com a dor, a revolta e as sequelas da barbárie. O avô, Getúlio Silva de Santana, de 72 anos, morreu em 2021. “Ele entrou em depressão após a morte de Geovane. Tinha diabetes, deixou de ir ao médico e de tomar os remédios. Acabou morrendo por complicações da doença”, conta Jurandy. >
Pouco depois da morte de Geovane, nasceu a filha dele. Apesar do acompanhamento psicológico, a menina, hoje com 11 anos, ainda tenta compreender o que aconteceu com o pai. “Quando era pequena, dizíamos que ele estava viajando. Com o tempo, passou a questionar mais, queria saber por que os pais das amigas iam buscá-las na escola e o dela não. Hoje, os psicólogos trabalham a realidade com ela”, relata Jurandy. >
Apesar de seus quase dois metros de altura, o pai tenta ser forte para seguir em frente, mas admite que a dor persiste. “Na época eu tinha 39 anos. Tento manter a rotina, inclusive de trabalho, mas a saudade aperta. Qualquer lembrança faz tudo voltar”, desabafa. >
Abordagem >
Geovane Mascarenhas desapareceu após ser abordado por policiais da Rondesp BTS, no dia 2 de agosto de 2014, no bairro da Calçada. Sem respostas da polícia, o pai iniciou uma investigação própria e encontrou um vídeo que registra o último dia de vida do filho, no qual ele é retirado da motocicleta e colocado no porta-malas de uma viatura da Rondesp/BTS. >
Laudo do Departamento de Polícia Técnica (DPT) apontou que o jovem foi decapitado e teve o corpo carbonizado. Segundo o Ministério Público, Geovane foi executado dentro da sede da Rondesp, às 21h daquele mesmo dia. “O corpo da vítima foi localizado no dia seguinte, em uma casa abandonada, e a motocicleta e o celular foram subtraídos pelos acusados”, diz a denúncia.>
Inicialmente, três policiais responderam pelo crime. No decorrer das investigações, no entanto, a Polícia Civil encontrou indícios da participação de outros PMs na morte, na ocultação do cadáver e na manipulação de provas. >