Guerra de facções e latrocínio levam medo ao IAPI

Disputa entre grupos criminosos tem gerado ataques que vitimam direta e indiretamente a população

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  • Wendel de Novais

Publicado em 31 de agosto de 2023 às 05:15

Rua Conde de Porto Alegre, onde auxiliar foi morto nessa quarta Crédito: Marina Silva/CORREIO

A Rua Conde de Porto Alegre, principal via do bairro do IAPI, em Salvador, registrou, em menos de 24h, dois casos fatais de violência. O último deles por volta das 9h30 dessa quarta-feira (30), quando um homem, identificado apenas como Felipe, foi executado com seis tiros por suspeitos que chegaram e saíram a pé da cena do crime. Na noite anterior, o motorista de aplicativo Clayton Pereira Santos, 30 anos, foi vítima de latrocínio (roubo seguido de morte) no mesmo local.

Apesar de acontecerem com poucas horas de diferença, os dois casos são distintos. O de Felipe, que trabalhava como auxiliar de serviços gerais no Hospital Ernesto Simões, seria relacionado a uma guerra entre as facções do Comando Vermelho (CV) e do Bonde do Maluco (BDM), que lutam pelo domínio da área. Segundo o que dizem moradores, Felipe não era integrante de nenhuma dessas facções e nem tinha qualquer envolvimento com o crime. A vítima, no entanto, era nascida e criada na localidade de Nova Divineia, que tem a atuação do BDM e é alvo recorrente de ataques de membros do CV.

"Teve até aviso de que iam fazer a 'favela chorar'. No último sábado, aqui mesmo, subiram e deram tiro para todo lado. Balearam quatro, mas ninguém morreu. Quando foi hoje [ontem], pegaram ele aqui de costas", explica um morador, que preferiu não se identificar.

A Rua Conde de Porto Alegre é a divisa entre Nova Divineia e localidades como Bem Amado e Brongo, que têm a atuação do CV. Por isso, confrontos entre as facções acontecem, de maneira geral, na avenida principal do bairro. Os ataques acontecem tanto à noite como durante o dia e, de acordo com moradores, nem sempre têm traficantes como alvos.

"A gente já se acostumou com isso e eles não matam quem é envolvido. Esse menino mesmo não era, só morava aqui. No máximo, conhecia alguém que cresceu com ele e era traficante. Porém, eles estão dispostos a derrubar quem está no meio para mandar o recado. Quem precisa trabalhar e andar por aqui fica exposto", conta uma moradora de Nova Divineia, também sem dizer o nome.

O confronto entre as facções tem elevado os índices de violência no bairro. De janeiro até aqui, o Instituto Fogo Cruzado registrou 18 tiroteios, com 15 mortos e três feridos. Destes, quatro tiroteios, sete mortos e um ferido foram registrados em ocorrências entre os dias 2 e 9 de agosto, quando houve uma semana de pico de violência no bairro.

Ao longo de agosto, por conta da violência promovida pelas facções, o bairro sofreu as consequências. No dia 10, moradores afirmaram que houve toque de recolher após dois integrantes do CV serem mortos em uma ação policial em Salinas de Margarida, sendo um deles a liderança 'Cris do Murão'. "Quando aconteceu, pouco depois já avisaram que era para fechar as coisas e que não era para ter aula. Decretou toque de recolher e ninguém ficou para contar história", disse um morador, na época.

No mesmo dia, as aulas foram suspensas em quatro escolas municipais, segundo a Secretaria Municipal da Educação (Smed). Ao todo, 623 alunos estão sem estudar. As atividades foram suspensas na Escola Municipal Cardeal da Silva, no Cmei José da Silva Tavares, no Cmei Epifânia Silva e na Escola Municipal Marcos Vilaça.

No dia 17, o IAPI viveu mais uma madrugada com tiroteios intensos e um homicídio. De acordo com moradores, houve um confronto entre as facções do CV e do BDM, que disputam o domínio territorial da região para o tráfico. O epicentro da disputa, inclusive, seria a localidade de Nova Divineia, da mesma forma que ocorreu nessa quarta-feira. 

Alunos voltaram a ficar sem aula. Daquela vez, 436 alunos foram afetados. A rotina de suspensões já preocupava os pais de estudantes que relatam perdas no desenvolvimento dos filhos por não verem uma continuidade no processo de ensino.

Nessa quarta-feira (30), não foi diferente. Mais de 400 estudantes da rede municipal ficaram sem aula. Por conta da sensação de insegurança, a Secretaria Municipal da Educação (Smed) suspendeu as atividades em quatro escolas: Marcos Vilaça, Cardeal da Silva, Cmei José da Silva Tavares e Epifânia Silva. No total, 421 estudantes do turno vespertino ficaram sem estudar. As mesmas escolas devem permanecer fechadas nesta quinta (31), afetando ainda mais estudantes, de mais turnos.

Motorista de App

O caso do motorista Clayton Pereira Santos, no entanto, não tem a ver diretamente com esses confrontos. Ele estava em serviço quando foi surpreendido por um assalto e morto a tiros dentro do próprio carro, uma Spin de cor branca. Policiais militares da 37ª CIPM foram acionados para atender a denúncia e encontraram Clayton sem vida.

O corpo do motorista passou por perícia do Departamento de Polícia Técnica (DPT), que vai emitir laudos que podem ajudar na investigação do crime. O Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) investiga o caso. O Fogo Cruzado contabilizou cinco motoristas de aplicativo baleados em Salvador e RMS em 2023. Destes, quatro acabaram morrendo.

Clayton foi encontrado sem vida dentro do carro Crédito: Reprodução/Redes Sociais

O Sindicato dos Motoristas por Aplicativos do Estado da Bahia (Simactter-BA) também contabiliza dados de violência contra a classe. Segundo o levantamento do Simactter, até o dia 25 de agosto, houve 267 roubos ou furtos contra motoristas, além de 16 sequestros relâmpagos, quando os profissionais foram obrigados a fazer transferências via Pix para suspeitos.

No ano passado, de janeiro a agosto, o sindicato registrou um latrocínio. Neste ano, porém, o número já está em quatro, como apontou o Fogo Cruzado. Presidente do Simactter, Átila do Congo pede a atenção das forças de segurança perante o crescimento de casos fatais envolvendo motoristas.

“Hoje, a família de Clayton chora e todos nós também. Ele morreu tentando defender sua dignidade e o seu sustento. Estamos cansados de perder pais, filhos e irmãos de uma forma tão cruel, enquanto eles trabalham”, lamenta Átila.

Vulnerabilidade

De acordo com o especialista em segurança pública Thiago Costa, a Bahia tem sido palco de intensa disputa, inclusive com influência de facções nacionais, por ser o maior estado da região nordestina e possuir características que facilitam a entrada e permanência desses grupos. Costa classifica o mercado baiano de drogas como extremamente lucrativo, por causa de cidades como Porto Seguro, Salvador e Feira de Santana, além de possuir uma polícia ineficaz e uma população economicamente vulnerável.

“Por mais que haja investimento em inteligência, a polícia age no combate como primeira opção, tanto que temos a polícia mais violenta do Brasil em números absolutos, mais do que o Rio de Janeiro. Só se atacam as pontas do tráfico. No outro dia, a facção já recupera tudo (arma, droga e gente). Pessoas, inclusive, são descartáveis para eles, porque há uma massa de gente em vulnerabilidade nas cidades. A Bahia tem o recorde de desemprego do país e 70% de Salvador não tem nenhum planejamento urbano”, explica o especialista.

A lucratividade do tráfico não se limita à venda de drogas, o que também amplia as possibilidades de crescimento dos grupos criminosos. A arrecadação provém de roubos, furtos, venda de carros e suas peças, assalto a bancos e celulares.

“Até grandes festas promovidas por líderes e o mercado imobiliário paralelo podem ser fontes para lavagem de dinheiro das facções”, destaca Costa.

*Colaborou Emilly Oliveira