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Larissa Almeida
Gilberto Barbosa
Publicado em 24 de abril de 2025 às 05:45
A Bahia registrou 810 casos de feminicídio nos últimos oito anos. Os dados, disponibilizados no Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp), pasta vinculada ao Ministério de Justiça e Segurança Pública, dão conta das ocorrências computadas desde que a Lei do Feminicídio foi criada, em 2015 – naquele ano e em 2016, as ocorrências foram subnotificadas. Apesar de passar a reconhecer o crime de ódio contra a mulher, inicialmente, como agravante e, a partir do ano passado, como crime específico e com pena própria, o dispositivo da Justiça não tem sido eficaz em coibir novos casos de violência. Segundo especialistas, isso se deve a diversos fatores, que vão desde a dificuldade de aplicação da lei até a negligência estatal. >
Irna Verena Silva Pereira, advogada especialista em Direito de Família, Direito Público e Direito Civil, destaca que a lei, por si só, não é capaz de erradicar uma violência estrutural. “A criação da Lei do Feminicídio foi um avanço simbólico e jurídico, mas sua efetividade depende da aplicação concreta e de políticas públicas integradas. A ausência de investimentos em prevenção, a falta de acolhimento e a impunidade ainda são barreiras graves”, analisa. >
Ela lembra que o feminicídio é o desfecho trágico de um ciclo de violência que, muitas vezes, começa com o controle, passa por agressões psicológicas, morais, patrimoniais e físicas, e só termina quando o Estado falha em proteger a mulher. Daí a necessidade de que essa proteção comece, primordialmente, pela educação, conforme pontua Flávia Nogueira Gomes, pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher. >
“A educação desempenha um papel fundamental na prevenção e combate à violência, ao promover a conscientização sobre o problema, a desconstrução de estereótipos e a promoção de relações saudáveis e igualitárias desde a infância, uma vez que ajuda a identificar os sinais de violência de intimidação, a compreender as suas causas e consequências e a promover a prevenção através da informação e do diálogo”, frisa. >
Atualmente, no entanto, as violências praticadas contra mulheres estão inseridas em uma construção social patriarcal que tenta preservar as relações de poder que favorecem os homens. A partir de outros recortes sociais, como raça e classe, a estrutura favorece, sobretudo, os brancos e ricos. >
“Especialmente na Bahia, cuja realidade traz uma marca muito forte da história colonial e dos efeitos da escravização, que estruturou (e estrutura) nossa sociedade, essa maior vulnerabilidade a que estão expostas [as mulheres, sobretudo as negras e com menor poder aquisitivo], dificulta o acesso aos aparelhos públicos, culminando com a dificuldade em interromper o ciclo de violência”, dizwm Flávia Nogueira Gomes e Gabriela Lins Vergolino, pesquisadoras do PPGNEIM. >
Uma vez que há falha sistemática no acesso à educação, outra falha do Estado é no acolhimento. Em muitas localidades, faltam delegacias especializadas, atendimento psicológico e jurídico, casas de acolhimento e equipes treinadas para lidar com esses casos. A professora criminalista Daniela Portugal, que é doutora em Direito Penal pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) e mestranda pelo PPGNEIM/Ufba, chama atenção para a alta probabilidade de subnotificações em decorrência da falta de garantias de acolhimento à mulher no momento da denúncia. >
“No interior do estado, principalmente nas localidades em que sequer existe uma Delegacia da Mulher, há situações muito mais negligenciadas pelo estado. [...] Identifico como retrocesso o atendimento virtual em plantões nas delegacias, porque as mulheres vítimas de violência devem ser atendidas pessoalmente por mulheres, porque elas nem sempre se sentirão confortáveis em trazer um episódio de violência para um agente do gênero masculino, ainda que ele diga que vai colocá-la em contato com uma delegada virtualmente”, afirma. >
Há também impasses na credibilização das vítimas que, por vezes, se veem diante de uma revitimização. “Muitas mulheres deixam de denunciar porque têm receio de não serem levadas a sério ou de serem julgadas pelas autoridades que deveriam acolhê-las. Isso reflete um despreparo generalizado de profissionais do sistema de justiça e segurança pública, que muitas vezes reforçam estereótipos e culpabilizam a vítima”, explica a advogada Irna Verena. >
A cultura da impunidade e a falta de políticas públicas contínuas também reforçam a lógica violenta que deixam as mulheres desprotegidas. Um exemplo disso foi a morte Catarine de Souza Cerqueira, no dia 14 de abril, na Rua Barbacena, em São João do Cabrito, no Subúrbio de Salvador. Ela foi morta a facadas pelo ex-marido no dia que iriam assinar os papéis do divórcio. Paulo Sérgio Santos Cerqueira, que não aceitava o fim do casamento, estava impedido de se aproximar dela por uma medida protetiva e ainda era monitorado por tornozeleira eletrônica. Contudo, nenhum desses dispositivos legais o impediram. >
Irna Verena explica que, em tese, a medida protetiva de urgência é um dos principais instrumentos previstos pela Lei Maria da Penha para proteger mulheres em situação de violência. A mulher pode solicitá-la diretamente em uma delegacia de polícia, no momento em que registra a ocorrência, ou por meio da Defensoria Pública ou do Ministério Público. Não é necessário estar acompanhada por advogado. A análise deve ser imediata, e o juiz deve se manifestar com urgência, preferencialmente em até 48 horas. >
As medidas podem incluir o afastamento do agressor do lar, a proibição de aproximação e contato com a vítima e seus familiares e restrição de visitas aos filhos, a depender da situação. O descumprimento dessas medidas é crime e pode resultar na prisão preventiva do agressor. >
Na prática, no entanto, muitos homens descumprem essas medidas, apesar da lei. “Eles descumprem seja por se sentirem impunes, pela falta de fiscalização, ou pelo déficit de estrutura estatal. [Por isso], é fundamental que haja investimentos contínuos em capacitação de agentes públicos, na ampliação do monitoramento eletrônico e em ações educativas que promovam a responsabilização dos agressores e a valorização da vida das mulheres”, enfatiza Irna. >