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Larissa Almeida
Publicado em 28 de outubro de 2025 às 05:45
O cemitério de escravizados onde foi encontrada a ossada de pelo menos duas pessoas em pesquisa arqueológica recente, na Santa Casa de Misericórdia, em Salvador, passou a ser oficialmente reconhecido como Sítio Arqueológico Cemitério dos Africanos pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Com a mudança de status, o local deverá deixar de funcionar como estacionamento do Complexo da Pupileira, no bairro de Nazaré. >
O reconhecimento como sítio arqueológico significa, na prática, que o espaço não pode ser utilizado para aproveitamento econômico, nem ser destruído ou mutilado, sem autorização do Iphan. Como patrimônio tombado, a proteção é feita pelo Estado, de modo que quem agir de maneira destrutiva contra o espaço responde às autoridades federais. >
Cemitério de escravizados em Salvador
A homologação do cemitério como bem cultural nacional ocorreu após a apresentação oficial dos resultados do estudo arqueológico, na última terça-feira (21). Na ocasião, a equipe de pesquisadores e arqueólogos se reuniu com o Ministério Público da Bahia, do Iphan, da Fundação Gregório de Matos (FGM) e do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural do Estado da Bahia (Ipac). >
Jeanne Almeida, arqueóloga que liderou as pesquisas em campo, celebrou a possibilidade de reescrita do cemitério na cidade de Salvador. “A partir do momento que comprovamos materialmente a presença desse cemitério, trazemos a possibilidade de a sociedade falar sobre o tema, criamos uma área que serve para ressaltar a memória social e coletiva desses grupos, além de fomentar debates mais aprofundados sobre a permanência dessas pessoas na sociedade baiana e brasileira, ainda que forçada, e suas contribuições”, ressaltou. >
Apesar de a estimativa apontar a possibilidade de existir 100 mil corpos enterrados no cemitério onde atualmente funciona o estacionamento da Pupileira, esse número ainda é impreciso. De acordo com Jeanne, cálculos feitos durante a pesquisa sustentam a possível alocação de 80 mil a 100 mil corpos na área de aproximadamente dois mil metros quadrados, mas ainda é preciso mais investigações para uma maior precisão. >
“Existem dados comparativos entre tempo e ocupação dos cemitérios nos outros períodos. Foi feito também um cálculo com base em livros nos livros de banguês – documento que registrava as transações comerciais para sepultamentos feitos pela Santa Casa. O livro, no entanto, não era quantitativo, então os enterramentos que não passaram por nenhum processo financiamento não eram registrados. E sabemos que a população que era enterrada ali era marginalizada, então muitos corpos foram abandonados próximos às áreas enterradas, mas sem honra”, pontua. >
Para Jeanne, o quantitativo a ser encontrado no cemitério não é tão importante quanto a possibilidade de reascender uma história que foi apagada sem dar direito à memória aos escravizados, brancos pobres, pessoas livres que lutaram em rebeliões, indigentes, pessoas que foram presas e tantas outros que viviam à margem da sociedade durante os 170 de atividade do cemitério. >
A pesquisa arqueológica, que escavou uma área de, aproximadamente, 1,5 m² em uma profundidade de cerca de 3,30 metros, coletou um material que totalizou 224 peças em apenas 10 dias. Destas, 100 eram fragmentos ósseos humanos pertencentes, pelo menos, a duas pessoas – o que ficou evidenciado pela constatação de unidades dentárias que não se repetiam. >
Segundo a arqueóloga, muitos dos indivíduos eram enterrados em covas coletivas, o que ficou provado durante a detecção de ossadas de pessoas distintas em um espaço tão limitado quanto o pesquisado. “Esses corpos eram depositados diretamente ao solo, ou seja, sem nenhuma proteção, o que mostra o tratamento desumano no momento da morte”, frisa Jeanne. >
Como a pesquisa teve caráter de diagnóstico, ou seja, não tinha como missão o resgate de toda a ossada que está enterrada no estacionamento, a pesquisadora acredita que os demais restos mortais estejam em toda a extensão do espaço. Isso inclui covas em profundidade maior, uma vez que o local passou por um processo de aterramento. >
Nesta segunda-feira (27), o Iphan pediu a desocupação do estacionamento frontal do Complexo da Pupileira. O órgão defende a criação de um memorial para preservar a memória histórica das pessoas enterradas no local. >
“Por se tratar de um campo santo e uma área de relevância histórica, com aspectos sensíveis envolvidos, os pesquisadores recomendam a continuidade do processo de escuta da sociedade, a continuidade da pesquisa arqueológica na área e a criação de um espaço reservado memória das pessoas ali enterradas, no local, aberto ao acesso público”, declarou o órgão. >
Por instrução do próprio instituto, os pesquisadores envolvidos na redescoberta do cemitério agora fazem parte de um comitê que reúne profissionais que atuam na preservação da história de outros cemitérios de escravizados, como é o caso do Sítio Arqueológico Cais do Valongo, no Rio de Janeiro. A ideia é que, a partir de diálogos, seja possível criar expertise para decidir a maneira ideal de preservar o sítio arqueológico soteropolitano. >
Além disso, é pretensão dos pesquisadores ampliar os estudos. “Vamos dar continuidade à escuta social, seja através de audiências públicas, porque queremos tentar incorporar as dores e necessidades sociais no que está sendo projetado, para que possamos observar aquela área como uma que evoca a memória social e coletiva, principalmente das comunidades negros. A possibilidade de aprofundamento maior da pesquisa também pode implicar na coleta de mais informações, mas ainda está tudo em campo aberto”, conclui Jeanne Almeida. >