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Larissa Almeida
Publicado em 27 de dezembro de 2025 às 15:23
Um Pai-Nosso seguido de uma declaração de amor através dos versos de ‘Como É Grande O Meu Amor por Você”, de Roberto Carlos, compôs o início da trilha sonora de despedida de Mãe Carmen, ialorixá do Terreiro do Gantois, no Cemitério Jardim da Saudade, no início da tarde deste sábado (27). A música, que no candomblé é também uma forma de comunicação espiritual, se fez presente até o momento em que o corpo da líder religiosa voltou para a terra sob cânticos em iorubá, que pediam para que o espírito dela soubesse que era hora de partir para o Orum (céu), acompanhada dos orixás. >
Por volta das 12h, ela foi enterrada em um jazigo próximo ao de Mãe Menininha e Mãe Stella de Oxóssi. As centenas de pessoas presentes na despedida, todas vestidas de branco da cabeça aos pés, acompanharam todo o rito sussurrando e pedindo aos encantados que dessem à Mãe Carmen uma passagem iluminada. Uma solicitação mais do que justa, no ponto de vista de Moreno Veloso, filho de santo da ialorixá no Gantois, diante do legado que ela deixou. >
Despedida de Mãe Carmen, ialorixá do Gantois, no Cemitério Jardim da Saudade
“Ela era minha mãe, tomava conta do Gantois, terreiro da minha família, do meu pai [Caetano Veloso], meus tios, meus primos. Toda a nossa relação era de amor, dedicação, respeito, conhecimento, cultura. Mãe Carmen representava tudo isso perfeitamente. Foi ela quem me apresentou Oxaguiã, o que foi um passo importante em direção à minha religiosidade”, relatou >
“Às vezes a gente fica em dúvida e a ancestralidade te chama, te coloca em frente ao orixá. Ela me falou ‘olhe para seu orixá, olhe para a cara dele, ele está do seu lado’, e eu vi. Então, o legado dela é de amor, respeito pela cultura ancestral e pela religião”, completou. >
Nizan Guanaes, um dos maiores publicitários do Brasil, empresário e fundador da N ideias, foi ao cemitério apenas como filho de Mãe Carmen, a quem tinha profunda admiração. “Ela foi uma líder espiritual muito especial e dedicada, além de uma grande administradora. Conduziu seu terreiro com influência na sociedade brasileira. Além de tudo, foi uma grande acolhedora. Eu me dedicava muito ao terreiro, mas toda vez que eu chegava lá ela perguntava pela minha esposa. Ela já deixa muita saudade”, frisou. >
A artista Daniela Mercury, que há 30 anos nutria uma relação de mãe e filha com a ialorixá, destacou a importância do laço que possuíam e a admiração pela figura religiosa. “Foi uma acolhida eterna que ela sempre me deu. Eu tenho uma admiração por ela como líder e, hoje, nós temos que reverenciar essa líder religiosa que eu acredito que seja a líder de candomblé mais importante do mundo. [...] Venho aqui pelo amor que sinto, pela história, amizade, admiração, para reverenciá-la e para acalmar meu coração por estar perto dela pela última vez", disse. >
"Quero também que o mundo entenda a importância dela, porque o Terreiro do Gantois tem uma história de matriarcas fundamental para a manutenção das religiões que foram absorvidas de partes da África. É um exemplo de luta e resistência contra o colonialismo, escravidão. Isso me comove muito como brasileira, mulher, baiana", acrescentou a cantora. >
Mãe Carmen também foi lembrada pela atuação contra a intolerância religiosa, que tem as religiões de matrizes como principais alvos no país. Para Evilásio da Silva Bouças, presidente do Conselho Municipal das Comunidades Negras de Salvador (CMCN), ela foi uma referência que deve ter seu legado mantido. >
“Mãe Carmen herdou esse legado e manteve com todo amor e carinho. Iniciada aos sete anos de idade, teve todo o preparo e vivência. Temos amor pelo trabalho que ela fez de dedicação à comunidade, no combate à intolerância religiosa. É isso que aprendemos com os mais velhos e na nossa convivência. Ter pessoas como ela, que teve essa história e esse legado, nos faz querer preservar essa referência”, declarou. >
Emanuel Nascimento, presidente da Sociedade Cruz Santa do Terreiro Ilê Axé Opofonjá – criada em atendimento ao pedido de Mãe Aninha –, mencionou as lições que recebeu de Mãe Carmen. “Ela tinha muita relação com Mãe Stella de Oxóssi, que foi minha ialorixá. Ela nos deixa um legado de aprendizado de trazer uma parada para o momento atual. No candomblé, é aos poucos que vamos conquistando. Por ser de uma casa irmã do Gantois, sempre nos apoiamos na religiosidade e contra a intolerância. Ela deixa um legado de amor, paz, ensinamento e muita esperança para o futuro”, pontuou. >
Margareth Menezes, ministra da Cultura, compareceu ao Cemitério Jardim da Saudade e relembrou os momentos que vivenciou ao lado de Mãe Carmen, nos raros encontros que tiveram. “Sempre foi uma pessoa muito amorosa, acolhedora, inteligente e com contribuições importantes tanto na responsabilidade dela no Gantois quanto na luta contra a intolerância religiosa. Ela foi um grande exemplo”, frisou. >
Um dos primeiros a chegar na cerimônia final de despedida, o prefeito Bruno Reis enfatizou u a relevância da ialorixá e o legado deixado por ela para Salvador. "Foi uma das principais ialorixás da Bahia em um dos terreiros mais tradicionais. Uma mulher muito sábia, que sempre teve proximidade muito grande com os mais pobres e os mais carentes, um exemplo a ser seguido por todos e que deixa um legado para a nossa cidade", disse. >
"Sem sombra de dúvidas, hoje é um dia muito triste. O povo de santo perde uma pessoa que era uma inspiração e referência, mas que com certeza deixa exemplos que serão seguidos e perpetuados para gerações presentes e futuras", acrescentou Bruno Reis. >
ACM Neto, ex-prefeito de Salvador, que chegou ao lado de Bruno Reis, relembrou a relação que possuía com Mãe Carmen e a admiração que sempre nutriu por ela. "Minha presença aqui hoje tem muito pouco a ver com política e muito a ver a com o carinho, admiração e respeito que tinha com ela, a energia que ela transmitia para todos nós", ressaltou. >
"Sempre foi impactante estar lá no Gantois com ela e ser recebido por ela. Às vezes, só para conversar e ouvir conselhos. É incrível, porque a gente sempre saía com a energia completamente renovada, com uma força e proteção enormes. Ela era uma unanimidade, em todos os sentidos. Uma unanimidade para a religiosidade baiana, para a política, arte e cultura", complementou. >
A vereadora Marta Rodrigues, que também tinha relação bastante próxima com Mãe Carmen, contou que, mesmo já debilitada nos últimos tempos, de cadeira de rodas, a ialorixá fazia questão de acolher a todos no terreiro. “Ela sempre nos convidava para nos abençoar e mostrar os caminhos. Era uma matriarca muito forte, que agora virou ancestral e vai estar de lá nos conduzindo, nos guiando. Ela nos contava, no período da pandemia, que todo mundo que chegava lá, ela acolhia e ninguém saía sem comer”, narrou, aos prantos. >
Foi Mãe Carmen que consolou a vereadora quando ela perdeu o filho. “Ela sempre acolheu com muita capacidade, com aquele jeito doce, mas firme também. Nas festas da casa, ela se preocupava em chamar a gente para se sentar no chão, perto dela, e colocar a cabeça no colo, para que ela pudesse cuidar da gente. Isso é o que fica”, finalizou Marta Rodrigues. >