Afro Fashion Day paralisa o Pelourinho em desfile de cores em homenagem à Mãe África

Tema ‘Mãe África’ trabalhou as diversas tonalidades do continente

  • Foto do(a) author(a) Gil Santos
  • Gil Santos

Publicado em 26 de novembro de 2023 às 00:23

Modelos exibiram as cores de África
Modelos exibiram as cores de África Crédito: Jorge Gauthier/ CORREIO

Quando o rei de Dongo (atual Angola) morreu, coube a irmã dele, Nzinga, assumir o trono. Era 1624 e a primeira vez que uma mulher seria a comandante em chefe das forças armadas, mas a rainha Nzinga Mbandi fez um governo tão excepcional contra a colonização que até hoje ela é lembrada com a ‘Mãe de Angola’. A história traça um paralelo com o Afro Fashion Day que, este ano, trouxe para a passarela mais negra do Brasil o conceito ‘Mãe África’.

E foi justamente o bloco Realeza quem deu início ao desfile do evento promovido pelo jornal Correio que chegou em sua 9ª edição em 2023. Os looks em amarelo ouro, azul royal e vermelho entraram na passarela logo após o relato da contadora de histórias afro-brasileiras Egbomi Cici de Oxalá, ou Vovó Cici. Aos 83 anos, ela lembrou que a Bahia tem a maior quantidade de negros fora da África, que a população africana é múltipla e diversa, e que para entender as origens de um povo é preciso conhecer a arte, música, cores, tecidos e tranças. Minutos antes, coube à potente voz da cantora baiana Nara Couto abrir os caminhos - para os 75 modelos que usaram looks de 41 marcas baianas - em canto para Oxum. 

Um dos primeiros modelos a pisar na passarela foi o DJ Amar Mansoor, 44 anos, homem negro e natural dos Estados Unidos. Ele está morando na Bahia há 15 anos e passou 12 deles vivendo no Pelourinho, onde a passarela foi montada, neste sábado (25). O público lotou o Terreiro de Jesus para acompanhar o desfile, a multidão aplaudiu o look do americano que foi parar na passarela de maneira inusitada.

“Foi um amigo quem me provocou. Ele apostou R$ 50 dizendo que eu não seria capaz de entrar no Afro Fashion Day. Eu aceitei o desafio, fiz a seletiva na Estação de Metrô da Rodoviária e passei. Ganhei os R$ 50 e ainda estou na passarela”, contou, provocando gargalhadas dos colegas.

Os familiares de alguns dos 75 modelos não conseguiram conter a emoção de ver os pupilos desfilando, levantaram, gritaram e aplaudiram. Um desafio para os profissionais que tentavam manter o semblante sério e concentrado no desfile. Brendha Vila Verde, 19, encarou a passarela do Afro Fashion Day pela terceira vez, mas disse que mesmo sendo veterana estava nervosa.

“Sempre vai dar um friozinho na barriga, aquele nervosismo para entrar, mas quando termina a gente sempre quer mais porque é uma sensação maravilhosa. Eu já trabalho há 3 anos como modelo, mas essa passarela tem um diferencial porque são todos modelos negros. É a nossa cultura e a nossa gente, e é muito bom poder ter isso na Bahia”, afirmou.

A rotina no Terreiro de Jesus foi alterada. As sacadas das casas, galerias, bares e restaurantes se transformaram em arquibancadas, e baianos e turistas que estavam de passagem arrumaram um espaço no gradil para acompanhar o desfile. A pequena Heloísa Souza, 10 anos, era uma das mais empolgadas. Ela aplaudiu os modelos e cutucou a mãe todas as vezes em que via algo que chamava a atenção na passarela.

“Adorei o cabelo de uma das meninas e a roupa de um menino. Teve um vestido amarelo que uma menina usou que era bonito demais. Muito criativo”, disse a pequena. A mãe dela, Geovana Souza, 40 anos, concordou. “Fico impressionada com a riqueza de detalhes de algumas peças e com os tecidos que alguns estilistas escolheram usar. A nossa Bahia tem um potencial incrível, isso é indiscutível”, frisou.

Nos bastidores, minutos antes dos modelos entrarem, o vai e veem era intenso. O designer de moda Aládio Marques representou duas marcas, a que leva o nome dele e a Soul Dila. Foram três looks na passarela. Ele contou que foi provocado a sair da zona de conforto e que ousou nos tecidos e nas cores.

“Quis me expressar e a peça foi quase um manifesto de libertação, colocar o sentimento a emoção e a criatividade para fora. Eu participo do Afro Fashion Day desde a primeira edição. Esse desfile é importante para mostrar que a Bahia tem um potencial que muitas vezes não consegue ser visto. É uma grande oportunidade para quem trabalha com moda”, disse.

O bloco Etnia trabalhou com as cores marrom, azul celeste, verde bandeira e laranja. Já o último, Afrofuturismo, vestiu os modelos de amarelo neon, laranja neon, rosa neon e verde neon. Os looks foram diversos, como é o continente africano, e muitos lembraram na tonalidade e nos detalhes as savanas, o pôr do sol, o céu alaranjado, as matas e a terra de África.

O Afrofuturismo foi a temática trabalhada pelo design de moda Déco Sodré, que assina a marca de mesmo nome. Segundo o profissional, o Afro Fashion Day estimula os estilistas a pensarem novas formas e estruturas.

“Preparei um look que quando bate a luz é como se fosse um flash, porque ele tem um tecido refletor e uma textura bacana. Vai impressionar. Esse desfile é importante não apenas para quem está trabalhando, mas também para quem está assistindo e se sentindo representado. É levar a nossa cultura, das nossas raízes, para o mundo”, disse.

Arte e consciência

O desfile teve trilha sonora de músicas baianas, clássicas e contemporâneas, que fizeram o público se remexer nas cadeiras na composição musical preparada por Telefunksoul. Houve também apresentações artísticas de Majur e MC Áurea Semiséria, o coreografo Zebrinha desfilou e as atrizes Marisa Orth e Lyu Arisson acompanharam da plateia. O Afro Fashion Day terminou sob aplausos.

Na passarela do Afro Fashion Day 2023, MC Aurea Semiséria ( @carretadaonze ), de Cajazeiras, falou sobre uma pesquisa inédita sobre “Dismorfia Financeira”, de will Bank. O estudo, que teve seus dados traduzidos na roupa vestida pela MC, expõe o abismo financeiro existente entre homens brancos de classe alta (AB) e mulheres pretas e pardas de baixa renda (classe DE). 

Entre os dados que mais chamam atenção na pesquisa está o fato de que quase 10% das pessoas pretas sentem tristeza ao lidar com dinheiro, enquanto nove em cada dez brasileiros (90%) não conseguem comprar tudo o que precisam e não contam com reservas que permitam fazer planos e pensar no futuro. Seis em cada 10 mulheres pretas (61%) da classe D e E utilizam palavras negativas para descrever sua situação financeira. Clique aqui e leia mais sobre a dismorfia financeira. 

Com direção de cena de Dam Fernandes e Gil Alves, um dos momentos que cativou o público foi a intervenção artística de Nildinha Fonseca, Larissa Pinto e Luana Pinto. Com espadas de Oxóssi na mão, elas fizeram performance de dança em homenagem aos ibejis enquanto looks eram desfilados na passarela.

Quem também presenteou o público com sua arte foi Bruno Vieira em número dança. O final coube à Majur, cantora e que teve sua expressão artística revelada ao Brasil quando desfilou no AFD anos atrás. Vestindo look desenvolvido por Fagner Bispo e Filipe Dias, Majur foi a última modelo a entrar na passarela e entoou o canto de Africaniei, uma de suas músicas de trabalho. Logo após a linha final de modelos, Vovó Ceci voltou em áudio para deixar a mensagem final e o recado para em 2024, quando será celebrada a 10ª edição do Afro Fashion Day.  

"Que vocês vivam um futuro sem esquecer o ontem, que vocês vivam o hoje sem esquecer o ontem e que se preparem para o amanhã. Cada um dentro da sua arte, cada um dentro dos seus conceitos, cada um dentro dos seus valores, todos, todas, todes, e o respeito em primeiro lugar". 

Confira as marcas que trabalharam no evento:

• AFRO REALEZA: Aládio Marques, Balbina, Criollo, Gefferson Vila Nova, Inti, Jeferson Ribeiro, Lourrani Baas, Mário Farias, MB Conceito, Mônica Anjos, Negrif, Realeza, Regina Navarro BelaOyá, Rey Vilas Boas e Silverino Oju.

• AFRO ETNIA: Abanto, Adriana Meira, Ateliê Casalinda, João Damapejú, Katuka Africanidades, Olorum, Sillas Filgueira e Soul Dila.

• AFRO FUTURISMO: Bixa Costura, Black Atitude, Christian Jonathas, Closet, Costa Ribeiro, Deco Sodré, Filipe Dias, Guilherme Almeida, Incid, Jorge Andrade, Kriaçã1, Nós Macramê e Soudam.

• ACESSÓRIOS: By Aninha, Cravo e Canela, Dih Morais, Kelba Deluxe, Tábompravocê e Ziê.

O Afro Fashion Day é um projeto do jornal Correio com patrocínio da Vult, Bracell e will Bank, apoio do Shopping Barra, Salvador Bahia Airport, Wilson Sons e Atacadão, apoio institucional do Sebrae e Prefeitura Municipal de Salvador e parceria do Clube Melissa.