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Maria Raquel Brito
Publicado em 11 de novembro de 2025 às 21:10
O clima de alívio era evidente em São Lázaro na tarde desta terça-feira (11). O motivo foi a suspensão da ordem de reintegração de posse do terreno da Universidade Federal da Bahia (Ufba) ocupado pela comunidade, que angustiava os moradores desde o último dia 15. Em reunião com a imprensa, eles falaram sobre o andamento do processo e os próximos passos da negociação. >
A decisão atende a um pedido da própria Ufba, que solicitou que a ação fosse suspensa por 180 dias para a negociação entre uma comissão formada por sete representantes da universidade e sete ocupantes da área. >
Moradores de São Lázaro se reuniram para discutir próximos passos
A sentença foi publicada a dois dias do prazo final para a ordem de despejo ser cumprida. Sem respostas, foi preciso que os moradores se juntassem para tomar providências: na manhã desta terça-feira, 14 pessoas da comunidade foram até o Fórum Teixeira de Freitas, em Novo Horizonte, para tentar falar diretamente com o juiz responsável, Igor Matos Araújo. Na sua ausência, falaram com a assessora, que os instruiu bem e passou segurança, de acordo com Caroline Santos, de 27 anos, moradora de São Lázaro. Horas depois, às 14h14, receberam a decisão.>
“Se a comunidade, não se juntasse, não corresse atrás de imprensa e de retorno da Ufba, seríamos despejados depois de amanhã”, diz Caroline, ao que outros moradores concordam com acenos de cabeça. “Esse pedido de suspensão só veio à tona porque a gente foi atrás. Assim que a imprensa falou com a gente e começou a divulgar, eles vieram com essa proposta. (..) A gente ficou no escuro, agora e antes. Esse processo está rolando desde 2023, eles fotografaram as nossas casas, no processo tem [fotos de] pessoas que estão na varanda de casa. Invadindo totalmente a privacidade dessas pessoas.”>
Apesar do conforto de saber que não vão precisar sair de casa de um dia para o outro, ainda há apreensão, porque não sabem o que esperar dos próximos 180 dias e se sentem “no meio de uma briga interna”. >
“Pode ser que seja só coincidência porque a gente está nesse processo de desespero e aflição, mas a gente tá 100% desconfiado de tudo. Porque a mesma instituição que apontou o dedo e falou: ‘vocês vão sair’, é a mesma instituição que está apoiando botando a mão no ombro e falando: ‘estamos com vocês’”, afirma.>
Moradores de São Lázaro recebem aviso de despejo de terreno da Ufba
“A partir de agora a gente tem 180 dias para correr atrás da permanência dessas famílias. Segundo o reitor, na reunião que nós tivemos na semana passada, o intuito da UFBA é deixar que essas famílias permaneçam em suas casas, mantenham os seus comércios, que o interesse deles não é retirar essas famílias. Então, a gente está acreditando nisso”, diz Caroline. >
Agora, segundo ela, o primeiro passo é marcar a reunião da comissão, de forma a entender a proposta da Ufba e apresentar o que seria favorável para a comunidade. A jovem afirma que o mais importante é continuar buscando uma resposta favorável, porque só quando o processo for finalizado os moradores ficarão satisfeitos. >
Isso porque o documento define que, caso a universidade não se manifeste até o fim dos 180 dias, o processo será extinto sem uma decisão final, o que abriria brechas para que um novo processo seja aberto no futuro. “A gente não quer isso. O que a gente quer é a segurança, é ficar no local”, defende Caroline.>
A moradora diz que um ponto essencial para a comunidade é uma retratação pública da Ufba para a comunidade, porque “o que está circulando nas mídias, nas redes sociais e na imprensa é que essas famílias, essas pessoas que estão aqui presentes, trabalhadores que largaram seus trabalhos e seus filhos em casa, têm a ver com facções criminosas, que é um local perigoso”, diz. >
Entenda o caso >
No dia 13 de outubro, viaturas de agentes da Polícia Federal, que acompanhavam uma oficial de justiça, entregaram a 14 famílias de São Lázaro um documento que exige a reintegração de posse do terreno que seria parte da Universidade Federal da Bahia (Ufba).>
“Eles deram 30 dias para a defesa da gente. Se a gente não fizer, vão vir aqui com as máquinas. Eles alegam que a invasão é de 2023 para cá, quando é uma inverdade. Só eu tenho 51 anos aqui e tem pessoas que são herdeiros de seus avós, com cerca de 70 anos que chegaram”, disse, na ocasião, o vendedor Luiz Fernando Souza, 67, que mora na localidade há 51 anos.>
As 14 famílias ficam em uma área específica - como se fosse o fim de um quarteirão - às margens da Igreja de São Lázaro. Engloba um perímetro que, além de casas, tem bares tradicionais, inclusive os que promovem o Samba de São Lázaro há três anos. A área da igreja não é afetada pela decisão judicial.>
“A gente recebeu essa bomba que ninguém esperava. Nunca notificaram a gente, nunca vieram aqui conversar, nem nada”, afirmou o morador Thiago da Silva, na época. Segundo Thiago, os policiais federais informaram que há um prazo de 30 dias para que a comunidade apresente uma defesa. Se não houvesse defesa, teriam que sair do local e poderiam ter que pagar até pelos custos dos equipamentos usados na demolição. A abordagem dos agentes durante a operação também foi criticada pelos moradores. >
Processo>
A ação movida pela Ufba teve início com uma investigação. A reportagem teve acesso ao processo e, segundo um dos documentos apresentados na petição inicial, de maio de 2023, uma denúncia havia sido recebida pelo sistema Fala.BR no ano anterior.>
A ocorrência registrava uma invasão em duas regiões do terreno, onde haveria loteamentos, demarcações e pequenos barrotes de madeira. O processo anexa diversas fotos que mostram o que seriam as novas ocupações do terreno, inclusive uma parte onde hoje ficam baias de cavalo. Haveria duas novas áreas de invasão - as duas foram demarcadas nos documentos iniciais como ‘novas ocupações do terreno’.>
A reportagem identificou que pelo menos uma das áreas é onde ficam baias de cavalo. A outra é apontada pelo processo como uma construção que funciona como uma pizzaria. Um despacho da Superintendência de Meio Ambiente (Sumai) da instituição destaca que a invasão era um "fato atual", mas tinha relação com um procedimento anterior.>
O terreno de Ondina-São Lázaro foi comprado pela Ufba em 16 de novembro de 1976, de acordo com uma certificação anexada pela instituição. Era uma área que pertencia à Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) e que havia sido desmembrada do antigo Parque de Exposições de Ondina, pertencente ao governo estadual. A área, segundo o documento, era de 5,6 mil m².>
Havia um processo interno, movido em 2007, que também buscava investigar justamente invasões no campus. Esse procedimento, segundo a ação, está atualmente na Procuradoria da universidade.>
Histórico >
A partir de 2023, alguns episódios são importantes para entender as movimentações do processo. Em 26 de junho daquele ano, a oficial de justiça Tatiana Fogueira relatou ter ido à Ufba e que, lá, servidores da instituição a teriam advertido, de forma unânime, sobre a 'impossibilidade de realização da diligência de citação e intimação dos ocupantes do terreno' apenas por uma oficial de justiça e sem acompanhamento policial.>
O motivo seria o 'grau de periculosidade dos invasores do terreno'. O documento menciona disputa entre facções rivais e o crescimento das invasões, que já se estenderiam à lateral da rua Professor Aristides Novis. A oficial cita que as construções de madeira já teriam sido substituídas por alvenaria com destinação comercial por parte dos imóveis, a exemplo de uma pizzaria.>
Em abril de 2024, a mesma oficial de justiça, Tatiana Fogueira, conta ter estado no local e visualizado dois cavalos. Ela cita outra reunião presencial em que recebeu um mapa cartográfico que aponta que outros imóveis na área, ainda que estivessem visualmente no terreno da Ufba, não seriam abrangidos pela ordem de remoção, "pois haviam sido objeto de transferência legal de propriedade ocorrida anteriormente ao presente processo judicial".>
Em 19 de maio deste ano, o juiz federal Rodrigo Britto Pereira Lima, auxiliar na 16ª Vara, concedeu a reintegração de posse da área do terreno e fixou, em 30 dias, a desocupação. A multa diária, em caso de descumprimento, seria de R$ 500.>
Já em 23 de setembro, a oficial de justiça do caso detalha outra reunião com a participação de servidores da Ufba e a Polícia Federal. Neste encontro, foi definido que o mandado de reintegração de posse seria executado justamente entre os dias 13 e 17 de outubro - o que de fato ocorreu. Ela cita uma suposta recusa da Ufba em identificar os ocupantes do terreno e que os representantes da instituição de ensino teriam manifestado "apenas verbalmente" uma redução do perímetro a ser reintegrado.>