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Maria Raquel Brito
Publicado em 19 de dezembro de 2025 às 08:33
Catarine de Souza Cerqueira estava se preparando para assinar os papéis do divórcio na manhã de 14 de abril de 2025. Após tempos separada do pai de seus filhos, a jovem de 27 anos tiraria o sobrenome dele de seus documentos e começaria uma nova vida. Os planos foram interrompidos pela violência: sem aceitar o fim da relação, o ex-companheiro matou Catarine a facadas na frente dos filhos de três e sete anos. >
Casos como o de Catarine fazem parte de uma triste estatística de violência contra as mulheres. Mundo afora, feminicídios deixam marcas que vão além do próprio crime: além da vida ceifada, ficam para trás famílias enlutadas e filhos que nunca mais verão suas mães. Só na Bahia, ao menos 69 crianças e adolescentes ficaram órfãs devido ao feminicídio entre janeiro e outubro de 2025. Dessas, 38 eram dependentes das mães. Os números são do Monitor de Feminicídios no Brasil (MBF), desenvolvido pelo Laboratório de Estudos de Feminicídios da Universidade Estadual de Londrina (LESFEM/UEL). >
CASOS DE FEMINICÍDIO E TENTATIVA
Em todo o Brasil, 391 das 2.978 mulheres assassinadas em 2025 tinham filhos menores de idade, e suas mortes deixaram 683 crianças e adolescentes órfãos de suas mães. Vale ressaltar que o índice pode ser ainda maior, devido à subnotificação dos casos. >
Nada pode mitigar completamente a dor de perder uma mãe. Mas, a partir de dezembro, crianças e jovens órfãos do feminicídio terão direito a uma pensão especial do Estado para garantir que não fiquem desamparadas. O benefício garante o pagamento de um salário mínimo por mês a filhos e dependentes de até 18 anos, contanto que a renda familiar por pessoa seja de até um quarto do salário mínimo atual. Caso a vítima tenha mais de um filho menor de idade, a pensão será dividida em partes iguais entre eles. >
A pensão foi instituída na Lei nº 14.717, de 31 de outubro de 2023, e regulamentada no fim de setembro deste ano. O pagamento deve começar ainda este mês, de acordo com a ministra das Mulheres, Márcia Lopes. O requerimento do benefício já pode ser feito, através do aplicativo Meu INSS. >
Entre os requisitos básicos para o acesso à pensão, estão a inscrição regular no CPF, a apresentação de documento oficial de identificação da criança ou adolescente – ou certidão de nascimento, quando não houver outro documento – e a inscrição no Cadastro Único (CadÚnico), que deve ser atualizada a cada 24 meses. Também é necessária a apresentação de ao menos um documento que comprove a relação do caso com um feminicídio, como auto de prisão em flagrante, decreto de prisão preventiva, portaria inaugural ou relatório de conclusão de inquérito policial, oferecimento da denúncia ou sentença condenatória definitiva.>
O CORREIO procurou o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), responsável por gerir o benefício, e o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), responsável pela operacionalização, para confirmar a previsão de pagamento e a quantia destinada à Bahia. O MDS afirmou que consultaria a área técnica e o INSS respondeu que recebe os requerimentos, analisa e concede o pagamento, mas não controla o orçamento.>
Para a pesquisadora Maria Eunice Xavier Kalil, integrante do GTFEM - Coletivo de Enfrentamento ao Feminicídio na Bahia, a pensão não representa uma reparação, mas uma medida essencial para o sustento de muitos desses jovens. “A pensão é uma necessidade de subsistência para as crianças e adolescentes que perderam suas mães e são acolhidas por pessoas cuja condição financeira já é bastante apertada. Assim como é a situação de grande parte das mulheres assassinadas por serem mulheres”, diz.>
Segundo ela, além da pensão especial, é preciso buscar garantir ativamente o acesso de órfãos do feminicídio a todas as políticas disponíveis na educação, na saúde, na assistência social e na cultura dos locais onde vivem. >
“Ou seja, devem ser objeto de conhecimento e atuação programática especial de cada destes setores, visando ajudá-los a processar suas perdas e traumas. Isso seria assumir que é responsabilidade do Estado, e não só das famílias que as acolhem, garantir que possam continuar a viver e a desenvolver-se como sujeitos, cidadãos e cidadãs de direitos”, afirma.>
Depois que presenciaram o assassinato da mãe, os dois filhos de Catarine, mencionada no início da reportagem, não conseguiram voltar a dormir e viviam com medo de que o pai, suspeito do crime, fosse atrás deles. O trauma se repete em outras casas. Dos 2.978 casos de feminicídio no Brasil no primeiro semestre de 2025 – tentados e consumados – 401 ocorreram na presença de crianças ou adolescentes, segundo o monitor do LESFEM. >
O número é ainda mais alto se tratando de violência doméstica: a edição deste ano da Pesquisa Nacional de Violência Contra a Mulher mostra que 71% dos casos de violência doméstica acontecem na frente de outras pessoas. Destes, 78% são crianças e filhos das vítimas.>
De acordo com a psicóloga familiar Mariana Félix, a pensão especial é um passo importante, uma vez que ajuda a garantir o mínimo de estabilidade financeira para que essas crianças tenham suas necessidades básicas atendidas. Mas, quando pensamos em desenvolvimento saudável, ainda mais após uma experiência tão traumática, é preciso olhar além. >
“É fundamental oferecer suporte emocional, social e educacional de forma contínua. O acesso a atendimento psicológico especializado é indispensável, preferencialmente em serviços públicos estruturados e com profissionais preparados para lidar com trauma. Também é necessário fortalecer toda a rede de proteção, como escolas, unidades de saúde e conselhos tutelares, para que trabalhem de maneira articulada. Outro ponto essencial é assegurar que essas crianças estejam em ambientes familiares acolhedores, com cuidadores orientados e sensíveis às suas necessidades”, diz. >
Ela reforça que a perda traumática, especialmente quando envolve violência e ruptura abrupta de vínculos, pode gerar impactos profundos, principalmente quando o agressor é o próprio pai ou alguém muito próximo, o que abala a confiança que essa criança deveria desenvolver no mundo e nas pessoas. >
Quando a violência é presenciada, esse cenário é ainda mais grave. “Essas crianças vivem em estado de alerta constante, esperando quando será o próximo episódio. Isso altera a forma como o cérebro se desenvolve, impacta a regulação emocional, o rendimento escolar e a capacidade de construir relações seguras.”>
A psicóloga infantil Nariana Nery concorda. Segundo ela, presenciar violência é, por si só, violência psicológica, sobretudo para o cérebro infantil, ainda em desenvolvimento, que registra a cena com intensidade. >
Nesse sentido, ela reforça que os cuidadores são a principal fonte de proteção após uma ruptura tão devastadora. Algumas orientações essenciais são estabelecer um ambiente de previsibilidade e segurança, reduzir a sensação de desamparo com rotina, constância e contato afetivo e nomear e validar os sentimentos dos pequenos. “A criança precisa saber que tristeza, raiva, medo e confusão são respostas normais. Evite frases como ‘não chore’ ou ‘você precisa ser forte’”, diz.>
Outro comportamento importante que a família deve adotar é não esconder a verdade, mas adaptar a linguagem à idade da criança. “O silêncio ou histórias inventadas confundem e aumentam a ansiedade. A informação clara, cuidadosa e adequada à maturidade protege a criança”, afirma. E completa: “Cuide de si para cuidar da criança. Adultos em sofrimento intenso têm menos recursos emocionais. Rede de apoio e suporte psicológico também são fundamentais para os cuidadores”.>