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Por que tanta gente ama histórias de assassinato? Saiba o motivo do fascínio pelo true crime

De Suzane Richthofen a Jeffrey Dahmer, o gênero true crime domina buscas e streams. Especialistas explicam por que gostamos de sentir medo, desde que na segurança do sofá

  • Foto do(a) author(a) Moyses Suzart
  • Moyses Suzart

Publicado em 8 de novembro de 2025 às 05:00

Série Tremembé
Série Tremembé Crédito: Divulgação

Quando a caixinha de pesquisa do Google está na frente do baiano, o que será que ele pesquisa? Quanto tempo falta para o carnaval, quantos feriados teremos em 2026, quantos pontos o Vitória precisa para escapar do rebaixamento ou se banho de mar melhora a ressaca? Ao menos nas últimas semanas, nenhuma das alternativas anteriores. O baiano queria saber mesmo quem era essa tal de Suzane Richthofen e onde é Tremembé. Desde a estreia da mais nova produção do estilo “true crime” (ou crimes reais), no universo dos streams, a plataforma mostrou um comportamento singular entre os usuários baianos: eles queriam saber sobre serial killer, crimes reais e notícias do gênero.

A plataforma Google avalia a pontuação de 0 a 100 no aspecto relevância e o assunto ‘true crime’ chegou ao ponto máximo entre usuários baianos, com pesquisas relacionadas também no pico, como pesquisas sobre o assassino em série Jeffrey Dahmer, cursos sobre investigação criminal e Suzane Richthofen, esta última no topo da pesquisa por mais de cinco dias seguidos. ele é uma dois personagens reais da série Tremembé. Afinal, por que tanta tara sobre criminosos e assassinatos brutais? Ouvimos especialistas, que contam, em diferentes visões, o motivo do assunto despertar o interesse.

Entre os especialistas, foi quase unanimidade um questionamento importante: o que desperta tanto interesse não são apenas os casos brutais e friamente calculados, mas também aqueles que poderiam acontecer com qualquer pessoa. Crimes que surgem de discussões banais, familiares, brigas no trânsito ou desentendimentos entre vizinhos. Até que ponto uma filha pode matar os pais? Qual a reação de sua esposa ao saber que você a traiu? vai te matar e esquartejar? Ou como explicar um pai matando uma filha pequena, jogando do 13 andar? O público se vê ali, como espectador e, de certo modo, como parte da mesma realidade. Um medo de algo que pode acontecer com qualquer um.

Talvez o fascínio esteja justamente nisso, em tentar entender o que leva uma pessoa aparentemente “normal”, do nosso cotidiano, a matar. Não se trata apenas de violência, mas de compreender o limite do comportamento humano. O que faz alguém ultrapassar essa linha? O que dispara o gatilho da raiva ou do descontrole? Ao se colocar diante dessas histórias, o espectador busca, ainda que inconscientemente, entender até onde ele próprio seria capaz de ir.

No quesito histórico, é bom frisar: a curiosidade sobre crimes reais não existe desde que o mundo é mundo. Antes mesmo do Brasil ser invadido, digo, ser descoberto por Portugal, o ‘true crime’ já bombava na Europa e nasceu quase junto com os jornais impressos, no século XV. Dá até pra dizer que o primeiro stream analógico true crime nasceu em 1439, com a invenção da máquina de impressão por Gutenberg. Além de servir para a impressão de jornais, a máquina passou a fazer sucesso na confecção de cartazes que detalhavam os crimes cometidos pelos condenados à morte em praça pública. Quase que um guia mórbido de quem iria morrer naquela manhã ensolarada de domingo na Inglaterra. E, segundo historiadores, bombava.

Logo depois vieram os Penny dreadfuls, os primeiros livretos baratos sensacionalistas que contavam histórias de crimes reais e inventados. Foi o primeiro tipo de história distribuído em larga escala, também no Reino Unido. Não parou mais. Passando por filmes como Silêncio dos Inocentes, docs e até mesmo programas sensacionalistas que ainda são exibidos no horário do almoço, o assunto cativa. “O ser humano é mórbido desde sempre, e a morbidez vende”, resume a criminóloga e escritora Ilana Casoy. Confira o que dizem os especialistas sobre este fenômeno:

Ilana Casoy, escritora, roteirista e criminóloga

Ilana Casoy, escritora, roteirista e criminóloga
Ilana Casoy, escritora, roteirista e criminóloga Crédito: Divulgação

O fascínio pelo true crime vem de algo muito humano, da curiosidade pelo comportamento criminoso e o desejo de entender o que leva alguém a ultrapassar certos limites. Mas há também um componente emocional importante: assistir a histórias horríveis, de muito risco e violência, em um ambiente totalmente controlado. O espectador está no sofá, com o controle remoto na mão. Vive a tensão, o medo e o perigo sem se colocar em risco, porque o controle está com ele. É ele quem decide até onde quer ir. Pode pausar, voltar, acelerar ou parar. Em um mundo real cada vez mais imprevisível, essa sensação de domínio sobre o medo é profundamente reconfortante.

Esse interesse não é exatamente novo. Nos Estados Unidos, o boom do gênero começou no início dos anos 2000 e continua até hoje. No Brasil, esse movimento chegou com atraso. Desde o filme Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia, em 1977, já se tentava explorar o crime real no audiovisual. O que vemos agora é a consolidação de um caminho que o mundo já percorreu: a mistura entre jornalismo, ficção e entretenimento em torno do crime.

O sucesso nas plataformas de streaming obedece ao velho paradoxo… Quanto mais vende, mais se produz… E quanto mais se produz, mais se vende. Há obras de altíssima qualidade, baseadas em apuração rigorosa, e outras que apenas exploram o tema de maneira superficial. No fim, o público é quem decide o que é bom ou ruim, porque cada pessoa consome true crime de um modo diferente. Há quem busque informação, há quem queira apenas se entreter. O problema surge quando a violência vira espetáculo, quando a dor é transformada em entretenimento puro, sem reflexão ou contexto.

Os crimes em série (serial killer) ainda ocupam um lugar especial no imaginário popular. São raros, extremos e de enorme impacto social. Fascinam porque representam o limite da violência, algo quase incompreensível. Mas há outros tipos de crime que também exercem magnetismo semelhante: os familiares, os que rompem o sagrado, os ligados a seitas. Tudo o que envolve o mistério e o inexplicável vai sempre funcionar como um ímã de audiência.

Dr. Sebastian Mello, advogado criminalista e professor de Direito Penal da Ufba

Dr. Sebastian Mello, advogado criminalista e professor de Direito Penal da Ufba
Dr. Sebastian Mello, advogado criminalista e professor de Direito Penal da Ufba Crédito: Divulgação

O fascínio por séries, documentários e podcasts de true crime não é algo novo. Ao longo da história, o interesse pelas narrativas criminais sempre existiu, apenas mudou de forma e de embalagem. E não é uma característica exclusiva da sociedade brasileira nem do nosso tempo. A humanidade, em diferentes períodos, demonstrou um certo encantamento pela criminalidade. Em outras épocas, as execuções eram realizadas em praça pública, em horários de destaque, para que todos pudessem assistir. O crime, desde sempre, carrega um componente de espetáculo.

O que se transforma é o tipo de crime que desperta atenção. Já foram os hereges, os traidores da pátria, os assassinos. Cada época tem sua “criminalidade espetacular” preferida, e a mídia encontra um jeito particular de contar essas histórias como entretenimento.

Esses programas costumam trabalhar com uma lógica maniqueísta. Em geral, o público é levado a se identificar com a vítima, enquanto o criminoso é desumanizado. Em vez de aparecer como uma pessoa comum que tomou decisões erradas, ele é retratado como um monstro ou, em alguns casos, como um anti-herói, alguém dotado de uma espécie de genialidade ou maldade transcendental. No fundo, tudo gira em torno de personagens. As histórias são construídas para vender narrativas, e esses personagens passam a representar muito mais do que os fatos em si.

Nada disso é neutro. Todo documentário parte de uma ideia prévia a ser validada. Mesmo quando afirma “ouvir os dois lados”, quase sempre há um viés confirmatório, uma tese que orienta o roteiro. E, se o objetivo fosse entender melhor o sistema de justiça, dificilmente essas produções ajudariam. Mesmo quando mostram o funcionamento da justiça, o que se reforça é uma visão punitivista, como se fazer justiça fosse sinônimo de punir. Poucos programas abordam condenações injustas ou a luta para provar a inocência de alguém. O foco quase sempre está na punição, e talvez seja justamente isso que explique parte do sucesso do gênero.

Cristina Kaipper, professora do curso de Psicologia da Unijorge

Cristina Kaipper, professora do curso de Psicologia da Unijorge
Cristina Kaipper, professora do curso de Psicologia da Unijorge Crédito: Divulgação

O fascínio por crimes reais é evidente quando observamos o sucesso de séries, filmes e programas jornalísticos sobre o tema. Há várias explicações para isso, e uma delas é instintiva: somos mais preparados para lidar com o medo e o perigo do que com a tranquilidade. Momentos bons tendem a ser esquecidos, enquanto as situações de tensão permanecem na memória. Assim, o consumo de narrativas criminais cumpre uma função simbólica importante, pois permite que o espectador entre em contato com o medo e a violência em um contexto seguro, protegido pela tela. Esse “medo controlado” ativa o sistema emocional ligado à sobrevivência, mas sem o risco real.

Além disso, o true crime organiza o caos da violência em uma narrativa compreensível, com começo, meio e fim. O medo, antes difuso, ganha lógica e explicação. Muitos estudiosos veem esse tipo de consumo como um “ensaio emocional” ou uma “vacina psíquica". Ao se expor simbolicamente à ameaça, o espectador elabora emoções difíceis, como ansiedade, impotência e curiosidade pela morte.

Há também um movimento de identificação com a vítima e de condenação ao agressor, o que toca em experiências próprias de sofrimento e injustiça. Ao acompanhar investigações e julgamentos, o público assume o papel simbólico de juiz ou detetive, tentando restaurar uma ordem moral que nem sempre existe na vida real. Esse envolvimento produz uma catarse, o alívio emocional que vem quando o culpado é punido ou a verdade revelada.

No contexto brasileiro, esse fenômeno ganha força porque há uma descrença generalizada nas instituições. O true crime, ao mostrar um sistema de justiça que funciona, ainda que na ficção, oferece uma sensação de “justiça simbólica”. É como se, dentro daquele universo narrativo, a justiça que falta no mundo real fosse finalmente feita.

Mas há um risco nesse consumo: a dessensibilização. Quanto mais nos expomos à violência, maior a chance de banalizá-la. O sofrimento humano pode se tornar algo cotidiano, quase trivial. O interesse saudável pelo tema nasce da curiosidade sobre a natureza humana; o exagero, porém, pode gerar ansiedade, medo constante ou indiferença.

As redes sociais intensificam ainda mais esse fenômeno. Mesmo quem não tem interesse inicial acaba sendo impactado por conteúdos de crime e violência. Além disso, o público deixou de ser apenas espectador para se tornar participante ativo, discutindo, julgando e investigando nas redes. Isso cria senso de pertencimento, mas também alimenta julgamentos apressados e linchamentos virtuais. O crime vira conteúdo, o sofrimento vira narrativa e a justiça se desloca do campo jurídico para o emocional.

Em última instância, o sucesso do gênero revela tanto o desejo coletivo por justiça quanto a necessidade de compreender e dar sentido ao mal e de nomear aquilo que nos ameaça e encontrar algum tipo de reparação simbólica em meio ao caos.

José Medrado, Graduado em Letras e Filosofia e líder espírita

José Medrado, Graduado em Letras e Filosofia e líder espírita
José Medrado, Graduado em Letras e Filosofia e líder espírita Crédito: Divulgação
Série Tremembé por Divulgação

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True Crime