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Maria Raquel Brito
Publicado em 23 de novembro de 2025 às 06:00
Todos os anos, no primeiro dia de novembro, começa uma das campanhas de saúde mais conhecidas: o Novembro Azul. As fitinhas rosas de outubro dão lugar às azuis, e a saúde masculina vira o centro da pauta. Mas, dentro do público que precisa estar atento aos riscos do câncer de próstata, há uma parcela muitas vezes invisibilizada. São as mulheres trans e travestis. >
Por terem sido designadas ao sexo masculino ao nascer, elas também têm próstata e, mesmo nos casos em que optam por cirurgias de redesignação sexual, esse órgão geralmente permanece. É o que explica o urologista Bruno Falcão, membro titular da Sociedade Brasileira de Urologia (SBU).>
Mulheres trans também devem se prevenir contra o câncer de próstata
“É uma cirurgia um pouco maior, com risco de incontinência e de impotência. E pode mexer na parte sensitiva, dos nervos, também, então a gente opta por deixar”, diz. Nesses casos, uma vez que a próstata fica anterior à parede vaginal após a vaginoplastia, os exames físicos são feitos via neovagina, quando indicado. >
Para essa população, o risco é menor que em homens cis, especialmente por conta do uso de estrogênio e supressão androgênica - uma vez que a testosterona é um dos maiores incitadores do câncer de próstata. Mas continua sendo um risco real. >
“Um estudo grande mostrou risco aproximadamente 2,5 vezes menor em mulheres trans em comparação aos homens cis. Porém, o PSA (Antígeno Prostático Específico, exame utilizado para detectar doenças prostáticas) cai muito com estrogênio, e usar o ponto de corte ‘tradicional’ (4 ng/mL) pode falhar. Valores bem mais baixos já merecem investigação e a avaliação clínica deve considerar idade, história familiar e sintomas”, diz. >
Em 2024, o câncer de próstata foi responsável por 17.587 mortes no Brasil, de acordo com um levantamento da Sociedade Brasileira de Urologia (SBU) com dados do Ministério da Saúde. >
Na Bahia, a situação toma uma dimensão mais alarmante, com a liderança do ranking de casos. De acordo com Bruno Falcão, alguns dos motivos dessa posição elevada são a dificuldade de acesso aos médicos. A Bahia é um estado grande e tem menor oferta de especialistas e exames. Além disso, o diagnóstico costuma ser mais tardio e a população é majoritariamente parda e negra - grupos com risco mais alto de desenvolver tumores de próstata e de forma mais agressiva. No caso da população trans, existe um desafio a mais: o receio. >
Keila Simpson, criadora da Associação de Travestis de Salvador e uma das fundadoras da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), sabe bem disso. Segundo ela, é comum que pessoas trans só procurem atendimento médico quando a doença já está em estágio avançado e impossível de tratar por conta própria, o que ela classifica como uma estratégia “completamente errada”, mas compreensível. >
“É preciso, sim, fazer prevenção das doenças, mas a gente não consegue transitar no ambiente de saúde de uma forma muito tranquila. O ambiente de saúde já é completamente difícil para a maioria de nós, travestis, mulheres transsexuais, homens trans. E quando estamos doentes, numa situação de fragilidade e vulnerabilidade, isso é ainda mais desafiador. Especialmente, quando é para tratar de algo tão delicado, que dialoga diretamente com questões que são um problema na vida dessas pessoas, que são as genitalizações. Isso é bem complexo”, ressalta. >
Geralmente silencioso, o tema ganhou fôlego na última semana após a cartunista Laerte relembrar o próprio diagnóstico, que recebeu em 2023 após um resultado de PSA alterado. À Folha de S.Paulo, ela disse que costumava ser negligente em relação à própria saúde e aos exames de próstata.>
Aos 60 anos, a ativista Keila Simpson admite que ela mesma não serve de exemplo nesse sentido, porque nunca fez os exames. Mesmo assim, defende que a presença de pessoas transexuais seja levada em conta nas campanhas de prevenção - tanto do câncer de próstata quanto do câncer de mama, no caso de homens trans - para evitar que outras repitam esse comportamento de risco.>
“Os desafios persistem quando a gente tem uma saúde tão binarizada: ‘saúde do gênero masculino’, ‘espaço do gênero feminino’, ‘profissional do gênero masculino’, ‘profissional do gênero feminino’. É um debate que está posto, que está muito em evidência nesse momento, porque existem pessoas do gênero feminino que têm próstata e existem pessoas do gênero masculino que têm útero. E aí eu estou falando de homens e mulheres trans. E é preciso que não a biologia, mas o corpo médico, que é quem lida com a população, seja humanizado nesse sentido”, salienta. >
O binarismo mencionado por Keila se reflete na dificuldade em encontrar dados sobre a incidência do câncer de próstata em mulheres transexuais e trazer visibilidade para esse recorte, uma vez que os exames preventivos não dispõem de marcadores de identidade de gênero, apenas de sexo: masculino ou feminino. >
Além dos estudos escassos - dentre os quais destaca-se uma análise publicada em 2024 na revista Prostate Cancer and Prostatic Diseases, voltada para essa população nos Estados Unidos -, não há números disponíveis sobre a situação brasileira.>