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Moyses Suzart
Publicado em 28 de junho de 2025 às 05:00
A verdadeira margem plácida que contribuiu para a independência do Brasil estava na Bahia, mais precisamente em Cachoeira, onde o país ficou livre antes daquele baratino no Ipiranga. >
Elisa não parava de fazer inúmeras selfies com o Rio Paraguaçu ao fundo. Soteropolitana, pela primeira vez estava em Cachoeira. “Rio bonito, né? Calmo, uma paz”, disse. Ela não sabe, mas ali mesmo, há 203 anos, essa paz não era uma opção. Aquele rio borbulhava de conflitos armados e era bala para todo lado entre brasileiros e lusitanos na primeira batalha pela independência do Brasil. Foi ali que tudo começou, meses antes do tal piriri e do grito às margens do Rio Ipiranga, no dia 7 setembro de 1822. “Você está dizendo que este rio é mais importante que o Ipiranga sobre a independência?”, indaga Elisa. Sim, estamos. >
Descer a pirambeira e dar de cara, na entrada da cidade, com o arco azul com os dizeres “Cachoeira heróica e monumento nacional” é como voltar no tempo e recontar um pouco a história que os livros didáticos contam sem esta parte crucial. Se todo trajeto da independência fosse, de fato, levado ao pé da letra, até a abertura do hino nacional teria que recalcular sua rota fluvial. O certo seria: “Ouviram do Paraguaçu as margens plácidas...”. >
Se a geração dos memes atualmente pode zoar Portugal, chamando os ex-colonizadores de Guiana Brasileira, tudo se deve à Cachoeira. E começou ali, naquele rio. Foi lá que o orgulho de ser brasileiro superou a soberania portuguesa nas nossas vidas.>
“Eu gosto de dizer que o Paraguaçu é o personagem vivo na independência. Quando eu recebo aqui a visita de alunos em excursões pela cidade, eu digo que, logo mais, eles vão conhecer o personagem mais antigo e ainda vivo desta luta. Aí apresento o Paraguaçu. É um ponto crucial a ser visitado, pois ali foi o ponto de partida para a libertação, na batalha de 25 de junho de 1822”, relata o historiador e especialista na história de Cachoeira, professor Fábio Batista.>
Afinal, porque o Paraguaçu foi o rio que conduziu a luta pela libertação de Portugal? A história se encarrega de contar. Contudo, é preciso voltar um pouco mais no tempo, quando Cachu tinha um nome quase do mesmo tamanho de D. Pedro I, reconhecido como regente primeiramente no recôncavo: Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira do Paraguaçu. Era um local extremamente rico e intelectualizado. Tão próspero que Portugal chegou a taxar a cidade com uma quantia bem gorda para pagar a reconstrução de Lisboa, que sofreu um terremoto em 1756. Desde este tempo, a turma de lá já não engolia muito os colonizadores.>
“O Recôncavo baiano, especificamente Cachoeira, respirou com a cosmopolita. Se discutia nas praças autores iluministas, as ideias liberais e pensamentos modernos. E o Rio Paraguaçu trazia isso, pois conectava a localidade com a Baía de Todos-os-Santos e, consequentemente, com o mundo. Era uma região que respirava ares globais”, conta Fábio.>
E foi pelo Rio Paraguaçu que chegaram baianos fugidos de Salvador, que viviam uma verdadeira repressão do comandante português Madeira de Melo. Ele foi o responsável pela execução da primeira mártir da independência, Joana Angélica, no Convento da Lapa, em fevereiro de 1822. No dia 24 de junho daquele mesmo ano, Cachoeira deu um basta. Na surdina, num salão secreto onde é hoje o Hospital São João de Deus, lideranças políticas, militares e populares de Cachoeira se reuniram para discutir a situação crítica de Salvador. >
No dia seguinte, no dia 25 de junho de 1822, Cachoeira tornou-se oficialmente o primeiro território livre de Portugal no país, na Casa de Câmara e Cadeia Cachoeirana. Lá foi escrito o primeiro ato, após consulta popular, proclamando o Príncipe D. Pedro I como Regente do Brasil e, consequentemente, livre dos lusitanos. Contudo, enquanto era celebrada uma missa em comemoração, na Igreja da Matriz, um navio português atracou e começou a bombardear Cachoeira e São Félix. O combate, a primeira na luta pela independência, acabou também como a primeira vitória brasileira, após três dias de intensa batalha. >
“Como é que eu nunca soube disso? Eu nunca mais vou olhar para o Paraguaçu com a mesma paz ou com os mesmo olhos. Que rio cheio de história, né? Agora já sei porque passou o São João e a cidade continua cheia desse jeito. Como é que a gente vem aqui e ninguém fala isso?”, indaga Elisa, do início da matéria, após contarmos esta historinha que os livros não contam. De fato, essa história precisa ser contada. Ou melhor, visitada. >
“É uma liturgia cívica que temos muito forte em Cachoeira e São Félix. O Recôncavo pulsa o 2 de julho, como Santo Amaro, Saubara com Caretas do Mingau, Itaparica, Maragogipe… Mas aqui, o povo faz questão de perpetuar esta história pouco contada desde o dia 1º de junho até a data final, no dia 2 de julho. Poderia se tornar facilmente um roteiro turístico da independência, levar este espírito cívico para outras pessoas”, conta Fábio Batista. >
Lugar é que não falta para visitar. E os cachoeiranos fazem questão de reviver esta memória e comparecer aos festejos da independência, que começam desde o dia primeiro de junho, com a levada dos mastros simbólicos para a Rua da Feira. O samba come no centro. No dia 24, véspera do primeiro ato de independência e dia do São João, São Félix e Cachoeira juntam sua cabocla e caboclo, respectivamente, no mesmo lugar dos mastros. Mais samba de roda, lógico. É o primeiro dia em que o casal se junta. >
Diz a lenda que eles namoram que é uma beleza. À noite, ninguém vai incomodar os pombinhos. No dia 25, um desfile cívico, nos moldes do 7 de setembro, inclusive com a presença do Exército, para levar os símbolos do 2 de Julho ao centro, mas especificamente onde está a Casa de Câmara e Cadeia, para celebrar o ato que desvincula o Brasil de Portugal. Adivinha: samba de roda, desfile, fanfarra e tudo que o povo merece.>
“Nasci naquele casarão e nunca perdi uma festa da independência. Não sei como isso não é reconhecido nacionalmente. Precisamos mostrar isso ao Brasil, como símbolo maior da independência. Um turismo, desses com guias, trazer gente pra cá. Trago todo ano minha família e amigos que nunca viram. Todos querem voltar”, disse Maria do Socorro Santos, de 80 anos. >
Socorro segue sempre o mesmo ritual, assim como boa parte dos cachoeiranos. No dia 25, ela arma as cadeiras na porta de casa, com comidinhas, licor e a família reunida para ver o cortejo com os caboclos. Segue o mesmo ritual até os festejos ao 2 de Julho. “Atualmente moro em Salvador, mas tenho minha casa aqui para acompanhar o desfile todos os anos. Está no sangue cachoeirano”. >
Para quem quer conhecer a cidade histórica e primeira livre do Brasil, tem de tudo, inclusive roteiros e passeios que visitam comunidades ribeirinhas e quilombolas, como Belém de Cachoeira, distrito a 7 quilômetros do centro, que também foram cruciais para a formação na formação dos batalhões patrióticos. Chama atenção também o Quilombo Kaonge, talvez o único roteiro turístico com imersão na história do lugar, chamado Rota da Liberdade.>
Para esse roteiro ficar como um verdadeiro mergulho no tempo, é sempre bom começar na Casa de Câmara e Cadeia, onde existem peças importantes da independência e onde o caboclo descansa no restante do ano. Depois, Igreja, da Matriz, seguido pelo Hospital da Santa Casa de Misericórdia. >
Se sua visita for durante o período de comemorações ao 2 de Julho, ainda tem a pira que corre pelo Recôncavo até a chegada à Salvador, representando toda luta pela independência que, ao contrário do que contam os livros, começou em Cachoeira. Sem contar o samba quase centenário de Dona Dalva e os bares de reggae que traçam diversas trilhas sonoras da independência. É uma visita que deveria ser obrigatória para cada brasileiro.>
E, depois de percorrer suas ruas que respiram história, nada melhor do que sentar num bar à beira do Rio Paraguaçu, abrir uma cerveja gelada e contemplar um rio que não pede holofotes, mas os merece. Enquanto o Ipiranga virou símbolo oficial, o Paraguaçu segue discreto, porém imenso, carregando nas águas a verdade sobre onde o Brasil realmente começou a se libertar. Em Cachoeira, a independência não foi encenada em meio a uma dor de barriga, mas foi vivida, com luta, coragem e participação popular. Que os livros refaçam seus roteiros: a independência começou aqui.>
Itaparica>
Quem toma uma cervejinha gelada na Praça Tenente João das Botas, em Itaparica, ou compra um artesanato no Casarão local, não imagina que é um lugar bom para turistar, mas crucial na independência da Bahia. Ali viveu um português que deu nome à localidade e viveu seus dias naquele casarão que hoje é ponto turístico. Este rapaz, mesmo lusitano, lutou ao lado dos brasileiros pela independência e, graças a ele, a Bahia é pioneira em mais uma coisa: alguns historiadores acreditam que foi em Itaparica que a Marinha do Brasil, sem vínculo com Portugal, foi criada. >
Tudo graças a João de Botas. Muito antes das tropas portuguesas serem expulsas de vez da Bahia, em 2 de julho de 1823, a Ilha de Itaparica já havia se tornado símbolo da resistência patriótica. O episódio mais emblemático dessa luta aconteceu em 7 de janeiro de 1823, quando um grupo de pescadores, marisqueiras e combatentes locais conseguiu uma das primeiras e mais decisivas vitórias contra os portugueses, numa batalha naval e terrestre travada com coragem e criatividade. >
João teve um papel crucial ao enfrentar a nau lusitana, pois ele transformou navios civis em militares, equipando-os com armamento e enfrentando os colonizadores. Por isso muitos acreditam que ali nasceu a Marinha do Brasil, com navios genuinamente brasileiros.>
Outro ponto crucial que vale a pena conhecer é o Forte de São Lourenço, também local estratégico para os brasileiros. Contudo, nada se compara à Praia do Convento. Além de ser linda, foi ali que uma das histórias mais fascinantes da independência aconteceu. Historiadores acreditam que foi naquela região que Maria Felipa deu uma surra de urtiga nos portugueses.>
Mulher negra, marisqueira e liderança popular da ilha, ela comandou um grupo de mulheres que ficou conhecido por atacar navios portugueses e até incendiar embarcações inimigas, além de aplicar “táticas de guerra” que envolviam surra de cansanção. Maria Felipa entrou para a história não como exceção, mas como símbolo da participação do povo negro, feminino e anônimo na conquista da liberdade.>
Roteiro da Independência em Cachoeira - Duração sugerida: 1 a 2 dias>
1. Câmara Municipal de Cachoeira (Paço Municipal)>
Foi aqui que, no dia 25 de junho de 1822, a cidade proclamou apoio à Independência do Brasil e rompeu com o governo português, antes mesmo do grito de D. Pedro no Rio Ipiranga. Dica: visite o Salão Nobre, onde líderes locais e o povo selaram o pacto independentista. Existem peças historicas no local.>
2. Hospital São João de Deus>
O salão do hospital serviu para reuniões secretas sobre a independência e foi sede da formação da Junta de Governo Provisório, simbolizando o início de um governo próprio e a organização da resistência. O hospital é um dos edifícios mais antigos da cidade.>
3. Ponte Dom Pedro II>
Uma das mais icônicas do Brasil, liga Cachoeira a São Félix. Construída no século XIX, oferece uma linda vista do Rio Paraguaçu e é símbolo de união regional. Dá também para esticar em São Félix. >
4. Rio Paraguaçu e Cais>
Foi aqui, em 28 de junho de 1822, que aconteceu a primeira batalha armada entre brasileiros e portugueses. O rio foi rota de fuga e chegada daqueles que lutavam pela Independência. Contemplar o local do confronto com vista para São Félix e o rio, é essencial para entender a geopolítica da época.>
5. Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário>
Igreja onde foi celebrada a missa solene após a aclamação de Dom Pedro. Um marco espiritual da independência. Ele tem uma arquitetura colonial e importância no enraizamento da fé católica na luta política.>
6. Samba de Roda de Dona Dalva – Terreiro de Samba Suerdieck>
Dona Dalva Damiana de Freitas é um dos maiores símbolos vivos da cultura afro-brasileira. Seu samba é Patrimônio Imaterial da Bahia e do Brasil e tem uma programação especial no período dos festejos da independência, geralmente regado a cerveja e muita maniçoba. Samba de roda raiz, com resistência cultural e sabedoria ancestral.>