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Pedro Carreiro
Publicado em 10 de setembro de 2025 às 05:30
Psicóloga do Vitória revela como ajudou o time a se reerguer após o trauma do 8x0 >
Em uma semana, entre 25 e 31 de agosto, o Vitória viveu dois extremos. De um lado, a angústia do histórico 8x0 contra o Flamengo, a maior derrota da era dos pontos corridos e um marco negativo eternizado na história do clube. Do outro, a redenção: uma vitória sofrida por 1x0 sobre o Atlético-MG, com raça, atitude e a resposta que uma torcida ferida demandava. No epicentro dessa transformação radical, uma profissional que trabalha nos bastidores do clube e é quase anônima entre os torcedores foi fundamental: a psicóloga do clube Maíra Ruas.>
O elo entre os dois jogos foi o trabalho silencioso e meticuloso de Maíra. Na coletiva pós-vitória, o técnico interino Rodrigo Chagas não poupou elogios ao seu trabalho, crucial para levantar o astral do grupo. A psicóloga, com a serenidade de quem já viu de tudo em 26 anos de experiência na área, explicou ao CORREIO o tamanho do impacto daquela derrota catastrófica. >
"O impacto foi muito grande. Nenhum jogador profissional dedica a vida para ter um resultado que marca como esse. É uma marca que leva para a história dos jogadores", reflete Maíra. O desafio, então, era monumental: "Foi um trabalho de reconstrução, de um dia que deu tudo errado, e esses dias acontecem na nossa vida também. Infelizmente aconteceu naquele episódio na qual todos nós estávamos participando, comissão, jogadores e torcedores. Mas a gente vê a força do grupo, não é quando se cai, mas na capacidade de se recuperar”. >
A estratégia não foi alterar a programação em pânico, mas intensificar o foco dentro da rotina estabelecida. "Foram feitos atendimentos de trabalhos individuais, que eu sempre faço, e trabalhos de grupo, que também faço. Não foi nada alterado dentro de uma programação, mesmo mais com um foco maior nessa recuperação", detalha. >
Ela é cautelosa ao analisar o episódio, mas o enxerga como algo que pode fortalecer o time para o restante da temporada: "Foi importante para o fortalecimento do grupo para a temporada. Tem que ter cuidado de falar assim, parece que foi boa a goleada, só que foi muito ruim. Mas a gente pode tirar algum aprendizado nesse momento difícil e a partir disso, ajudar nesse processo difícil que é a luta contra o rebaixamento”. >
Vitória 1X0 Atlético MG
Esta não é a primeira vez que Maíra é a arquiteta de uma recuperação mental no Vitória. Após passagem em 2013, ela retornou ao clube nos três meses finais da temporada passada, em um contexto nada favorável, em que o rebaixamento parecia inevitável para muitos torcedores após um primeiro turno catastrófico. >
Sob o comando do técnico Thiago Carpini, o time já dava sinais de melhora e Maíra se viu como o elemento final para solidificar a mentalidade: "O time já estava num processo de desenvolvimento. Ele já estava num processo decente. Foi como se eu fosse a cereja do bolo, só para eles estarem mentalmente mais fortes enquanto equipe". >
O resultado foi uma arrancada espetacular: sete vitórias, quatro empates e apenas duas derrotas nas 13 rodadas partidas finais do certame, escapando do rebaixamento com duas rodadas de antecedência e até se classificando para a Sul-Americana.>
No entanto, a profissional enfatiza que a psicologia não opera sozinha e ela não consegue fazer milagres. "A psicologia por si só não consegue salvar um time. Ela precisa de um treinador, precisa de uma tática, mas a partir do momento que você consegue ter essas combinações, aí sim dá para fazer o trabalho para que o grupo tenha foco, tenha concentração, tenha capacidade de resiliência, algo que faz parte do DNA do Vitória. É acreditar sempre", destaca. >
Maíra tem uma longa caminhada na psicologia esportiva. Ela começou no futsal do Vasco em 2003, passou pelas categorias de base e profissional do Botafogo, assim como outros gigantes do futebol: Vitória (em duas ocasiões), Bahia, Grêmio, Benfica, Vasco (por sete anos) e Cruzeiro, além de já ter ido para três Olimpíadas com o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) e palestrar na CBF Academy. Mas, mesmo em meio a tantas experiências, ela classifica esses dois momentos com o Vitória como alguns dos mais especiais em sua carreira. >
“Eu fiquei marcada pelo trabalho do Cruzeiro, em 2023, com o próprio Vitória, em 2024. Foram trabalhos muito marcantes, de uma aceitação muito boa dos atletas. Mais um dos maiores golpes da minha vida foi esse 8x0, na qual a recuperação é mais complexa. Porque nenhum atleta quer passar por essa experiência e a gente conseguir estar muito forte mentalmente no jogo com o grupo do Atlético. Acredito que esse acabou se gerando um caso bom e desafiador", analisa. >
Membros da comissão técnica do Vitória
Maíra também já vivenciou o outro extremo no próprio Vitória. Em 2013, ela integrou a comissão do time campeão baiano que aplicou goleadas históricas no rival Bahia (5x1 e 7x3) ao longo da competição. Porém, diferente do que muitos possam imaginar, que o trabalho de uma psicóloga só é necessário em um momento de crise, em momentos de vacas gordas ele é tão necessário quanto. >
“As emoções são universais num momento bom e num momento ruim. Quando você está num momento bom, você tem que fazer a manutenção para a sustentação daquele momento. Então, a atividade individual e a atividade coletiva continuam sendo as mesmas. Você só muda qual é o foco principal, qual é a demanda principal”, explica a profissional. >
A ironia do destino fez com que, após a saída do técnico Caio Júnior, ela fosse para o Bahia justamente para ajudar o rival a se reerguer após aqueles mesmos traumas que ela ajudou a infligir. >
O trabalho mental no Vitória é uma engrenagem diária e bem estruturada, longe de ser uma atividade esporádica em momentos de crise. Maíra atua dentro de um departamento coordenado por Rafael Daltro, responsável pela área de saúde e performance do clube. Sua equipe direta conta com Lucas Mattos, que é peça-chave no treino cognitivo dos atletas na academia. >
Enquanto Lucas foca em desenvolver habilidades como concentração e tomada de decisão rápida através de exercícios específicos – e está presente diariamente nos treinos para observação –, Maíra se dedica à gestão emocional. Seu trabalho é feito em atendimentos individuais agendados, garantindo a privacidade do atleta, e em atividades de grupo mensais, sempre alinhadas com a instituição e a comissão técnica. >
Todo esse trabalho integrado é feito com objetivos claros: “Você ter a capacidade de fazer uma resiliência em dias e estar totalmente renovado para o próximo jogo. Isso é uma habilidade que é desenvolvida. E o que seria uma habilidade cognitiva? Você conseguir desenvolver e sustentar a concentração o máximo de tempo possível. Isso aí é um outro tipo de habilidade. Então, essas atividades são complementares”, detalha Maíra. >
Contratações do Vitória na 2ª janela de transferências
Apesar da evolução, Maíra reconhece que ainda existe um certo preconceito à psicologia em alguns ambientes, mas ela conta como arma para combater isso a validação dos próprios jogadores. "Os próprios jogadores são a minha propaganda. A partir do momento que eles percebem a melhora deles, eles mesmo indicam, eles fazem essa autopromoção. Então fica algo mais assim, a validação é de atleta para atleta", conta. >
Ela ainda realça que qualquer tipo de resistência é cada vez menor, uma vez que os atletas estão cada vez mais acostumados e cientes da importância da psicologia. “Há 10, 15 anos atrás era mais difícil, mas a nova geração de atletas já vem sendo acompanhados por muitos psicólogos na base. Os atletas vêm essa atividade mais normalizada, porém cada psicólogo ainda tem métodos muito diferentes. Então, cada um chega com uma experiência e ali vai viver outra experiência assim, vai agregando ao atleta", concluiu. >